Mirah Por Aí

Minhas Histórias

PAPOS DE SALA DE AULA: Ditadura Militar Não Foi Tudo Isto que Dizem?

Um breve relato da minha mudança para Califórnia

O ano era 2018, exatamente em 31 de julho, e as minhas preocupações existenciais perturbavam o meu ser. Recém-completados os meus trinta e um anos de vida, cansada do meu trabalho e um relacionamento recém-terminado; sim, eu terminei um relacionamento para ir morar na Califórnia. A pergunta é: quem não terminaria? Mas isto é assunto para um outro diálogo. Decidi então mudar de vida e de endereço, e assim fui estudar inglês com o plano inicial de mudar de vez e não voltar mais para o Brasil. Ledo engano, porque sim, eu voltei dez meses depois.

Nas minhas experiências de viagens, o que mais me toca e chama à atenção são os comportamentos humanos, no sentido literal da coisa. Sem perceber, me pego observando as pessoas de um jeito até meio obcecado. E não é simplesmente observar as diferenças culturais de cada lugar, mas sim as diferenças de pessoas como ser humano. Confesso que o resultado destas observações é o que me deixa fascinada, mas ao mesmo tempo com medo e ansiosa para o próximo destino.

Neste período que passei em San Diego, na Califórnia, eu estudei em uma escola pública para estrangeiros que queira aperfeiçoar seu conhecimento na língua inglesa. Éramos divididos em salas de acordo com os níveis de fluência. Eu entrei na sala de nível intermediário, e nesta sala, como em todas as outras, tinham pessoas de várias nacionalidades e idades diferentes, inclusive muitos brasileiros. Foi lá que conheci um senhor do interior do estado de São Paulo que vou chamar de Sr. Walter.

Sr Walter

Sr. Walter era um senhor muito simpático e tranquilo, alto e branco, engenheiro civil aposentado que se mudou com sua esposa para San Diego a fim de ficar perto de sua filha e ter o convívio com suas duas netas. A filha dele se mudou para os Estados Unidos vinte e cinco anos antes para estudar e não voltou mais para a casa de seus pais no Brasil. Lembro que o Sr. Walter tinha uma feição calma e uma paz de espírito, que acredito eu, só os aposentados de classe média alta no Brasil têm a sorte de ter. Não estou tirando o mérito dele de poder desfrutar de toda essa tranquilidade depois de anos de trabalho. Sua esposa, mesmo aposentada, continuava trabalhando. Sua filha e genro também trabalhavam, e as netas frequentavam a escola. Com isso, ele acabou se vendo sozinho e entediado em uma nova casa, um país diferente do seu e de língua pouco conhecida. Sendo assim, decidiu voltar a estudar para dominar o idioma local e, de quebra, preencher metade do seu dia. Julgo eu que, se era para passar o tempo, ele fez uma escolha certa, pois as aulas eram de segunda a sexta-feira, das 08:00 às 13:00. Até hoje não sei como eu conseguia estudar, ter dois empregos, malhar na academia e correr na praia. Bons tempos.

Em uma destas manhãs, antes da aula começar, estávamos conversando sobre a política no Brasil. Lembrando que foi ano de eleição presidencial, onde a disputa direta e declarada era entre os candidatos Fernando Haddad do PT e Jair Messias Bolsonaro do PSL. Nesta conversa, estávamos dando nossas opiniões sobre esses dois candidatos e, em algum momento da conversa, eu mencionei minha indignação ao delírio coletivo, na minha opinião, de alguns grupos apoiadores do Bolsonaro que estavam fazendo campanha nas ruas pedindo a volta do decreto AI- 5. Com o meu conhecimento básico sobre o período da Ditadura Militar, mas consciente de que foi um período horrível, onde pessoas foram perseguidas, sequestradas e mortas apenas por lutarem pelo seu direito de fala e circular livremente, além de todo caos econômico que afetou o país inteiro, no auge da minha revolta, eu tentei colocar em palavras o quão absurdo eram pessoas que estavam defendendo este tipo de “governo”. Destaco que, durante todo o meu discurso, o Sr. Walter ouviu calado, atento e tranquilo. Até que eu parei para respirar e dei chance para o outro lado se manifestar também. Foi quando Sr. Walter, com toda a calma e tranquilidade do mundo que lhe cabia, disse:

•          Eu vivi durante a ditadura e não foi tudo isto não.

Neste momento, eu congelei e esperei pelos relatos que estavam por vir. Qual foi a chance de eu discutir com um senhor de quase oito anos que tinha vivenciado aquilo e estava ali na minha frente prestes a dar a versão dele dos fatos? Continuando, ele disse em poucas palavras, com a calma de sempre:

•          Quando o exército tomou o poder, eu tinha acabado de me formar engenheiro. Eu era bem novinho e fui convocado para trabalhar construindo os quartéis. Foi a melhor época da minha vida, quando ganhei muito dinheiro e onde fui melhor tratado. Eu comia muito bem e minha família também. Todos os dias eram peças e pedaços de carne assada da boa, e todas as refeições pareciam um banquete.

Entendendo o Significado da Expressão “CHO-CA-DA”

Como fiquei depois deste relato? Petrificada. Meu cérebro deu um nó que não se desfez por um bom tempo. Não porque eu não tinha entendido o resultado daquele diálogo, mas porque não tinha argumentos comigo mesmo, nem palavras para tentar externalizar o impacto daquele relato em mim. Aqui estou, vivendo anos após aquele regime cruel, imaginando o que isso significava para aqueles que estavam lá em 1968 quando tudo começou.

Não julgo a falta de empatia e consciência social do Sr. Walter, mas questiono este mundo que criamos, onde a desigualdade é tão grande que constrói e oferece mundos totalmente diferentes para as pessoas de acordo com sua posição financeira, etnia e conexões. São nos momentos mais tenebrosos da humanidade que podemos ver o tamanho e sentir a dimensão desta desigualdade.

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Mirah

Olá! Sou tripulante de navio de cruzeiros há mais de dez anos, já passei por mais de 70 países. E aqui relato minhas vivências de viagens e as histórias, que são a parte mais icrível de conhecer o mundo.